Sobre a biografia de Marinho
Biografia de verdade passa longe das notas melosas de samba de exaltação, usado para música de candidato a presidente dos tempos pré e pós Getúlio Vargas até 1964. É para mostrar o lado bom e o lado ruim do personagem público.
Ruy Castro escreveu obra sensacional sobre Garrincha que agradou a quem preza a boa literatura de reportagem e gerou ódio de familiares de Mané. Paciência. O livro não passa a mão nas diabruras de Garrincha nem esconde a tietagem do autor pelo mito.
Sobre a história, Ruy Castro foi perfeito e pesquisou com extrema paciência, rigor e checagem. Sua revelação, a que desagradou, o Brasil sabia. Mané amava a cantora escultural Elza Soares. Elza Soares, segundo alguns amigos e a prole feminina garrinchiana, era apenas uma aproveitadora. Cabe ao leitor tirar suas conclusões.
Eu – depois de ler, reler e repetir cinco ou seis vezes de tão espetacular o livro -, acho que Elza segurou a barra de Mané em horas difíceis e nunca pediu para ser santa. As filhas de Mané, como a pobre mãe, eram produtos de um Brasil barroco e canavieiro, abaixo do padrão miserável, da alienação e da procriação como sobrevivência.
Um advogado esperto usou de forma bizarra as filhas de Mané Garrincha a ponto de quase enlouquecê-lo com ações judiciais que somente ajudaram a trancafiá-lo na masmorra do alcoolismo, uma doença, não uma brincadeirinha irresponsável.
Mané arrumava um contrato, vinha um bloqueio de salário. Mané recebia um prêmio, o dinheiro caía na conta do causídico, sem que a pacata Nair e suas crianças soubessem a destinação. Mané também não cumpria o mandamento religioso da Pensão Alimentícia e, na legislação atual, teria cumprido desagradáveis férias em alguma colônia penal.
Ruy Castro permanece um dos maiores biógrafos do Brasil sem um arranhão no currículo pelas questões jurídicas que impedem outro escriba invejável, Paulo César Araújo, de compartilhar com o povo a história mais real possível sobre o Rei Roberto Carlos, de quem foi – não sei se ainda é – fanático admirador de infância.
Ao cair na arapuca de mostrar conforme acordo( ou concessão) originais do enredo cheio de curvas do poderoso ex-presidente da Fifa, João Havelange, o jornalista Ernesto Rodrigues sofreu toda espécie de humilhação. A cada detalhe a desagradar o Capo, Rodrigues recebia xingamentos absurdos, por ele gravados no prolongamento das entrevistas, uma saraivada degradante que o fez entrar em parafuso.
Rodrigues teve a coragem e a grandeza de se abrir diante de colegas do naipe de um Geneton Moraes Neto e lhes pedir uma sentença sobre seu comportamento passivo, quase servil. Desabafou. Tonto.
Aceitou as grosserias de Havelange, mudou trechos do trabalho, mas o publicou, desafiando a fúria e as ameaças de quem controlou o futebol e seus cofres por sofridas décadas com mãos e métodos déspotas.
O drama de Rodrigues virou documentário de TV e é visível o seu constrangimento. Escrever biografia é tarefa de obstinado, de vocacionado e de quem tem de aumentar o estoque de paciência para os desdobramentos.
Autor da série sobre Getúlio Vargas, Lyra Neto não contou com leitores da família do presidente suicída quando tratou de sua fase ditatorial, aquela que dentre algumas crueldades, mandou para o campo de concentração nazista e à morte, Olga Benário, mulher do líder comunista Luis Carlos Prestes. Claro que nenhum parente de Getúlio gosta de ver mencionada essa parte.
Quando fui dedilhar a trajetória do ex-jogador, meu ídolo e da torcida do ABC inteira , Danilo Menezes, sofri pressões, críticas de quem se mete a avaliar os outros mas não decora vogais e um pedido especial para não abordar, de maneira alguma, parte de sua vida pessoal, vivida entre o final dos anos 1960 no Rio de Janeiro(jogava no Vasco) e quase a década de 1970, em Natal.
Atendi a Danilo, com aquele seu jeito conciliador, terceirizando o corte e apresentando alegações indiscutíveis. Hoje, não sei se aceitaria o pedido. Acho que nem escreveria outra vez. Como não vou escrever a história do ex-meia do Vasco e da seleção brasileira(por quem fui convidado) , Geovani, ao sentir que fatos polêmicos seriam facilmente vetados. Eu não iria topar. Deixei claro nos primeiros contatos e, desde então, os contatos pararam.
Acaba de ser lançado o livro sobre Marinho Chagas, maior glória esportiva do Rio Grande do Norte. Escrito pelo jovem Luan Xavier, um rapaz que produziu texto primoroso, de prender o leitor da primeira até a última página de uma tacada só. Quem conheceu Marinho, como fã ou Marinho distante, fica sabendo ainda mais da delícia de figura chapliniana que ele foi.
Luan Xavier escreveu baseado na convicção que está guardada em seus olhos miúdos. Acredito nos fatos e – acima de detalhes – no gesto do repórter. Questões familiares – restritas, portanto, aos interessados, ou cascas de banana típicas do provincianismo malicioso da terrinha e do ofício, não interessam.
O impossível pela lógica, ninguém conseguiu: manter Marinho Chagas entre nós . Luan Xavier , de forma serena e firme como ensina o jornalismo correto, revive a Bruxa, criança travessa que a cidade esnobou – até zombou – para chorar tarde demais