
Tomei um choque. Já tinha quase 30 anos e era apenas a segunda vez que eu via os olhos marejados do meu pai, algumas lágrimas rolando pelos sulcos da sua face sexagenária. Ele estava sentado na entrada da minha casa, de frente ao mar da Redinha, mexendo na areia branca do jardim.
Ver sinal de dor na alma do meu maior herói tinha ilustrativas semelhanças com a primeira aventura do Superman em que ele era ameaçado pela kriptonita. Em 1967, eu já tinha algumas dezenas de revistinhas do personagem que meu pai comprava nas bancas da Avenida Rio Branco. Até que li uma com o elemento verde extraterrestre.
O primeiro choro paterno que presenciei foi no dia em que completei 12 anos e vi papai chegar em casa com um aspecto de tristeza no rosto. Murmurou alguma coisa para minha mãe e ficou desconsolado no sofá. Ela então me avisou que no final da tarde não haveria aniversário, “pois sua avó, mãe do seu pai, faleceu em São Paulo”.
Aos ouvidos de um menino, a notícia mais trágica foi o cancelamento da reuniãozinha que estava previamente marcada lá em casa com uma dezena de amiguinhos. Mas, duas décadas depois, foi um impacto ver o meu pai chorando, ainda mais na minha casa, como quem fugia da angústia e buscava abrigo naquele que tantas vezes protegeu.
Magoado e entristecido, o homem que para mim foi e sempre será uma versão humanizada de um deus infalível, foi em busca do filho para chorar sua dor. No dia em que ele morreu, em 1993, eu só chorei a perda após o sepultamento, quando deitei para dormir e me lembrei daquela tarde em que o vi triste na soleira da minha porta.
Luiz Cleodon de Medeiros, meu pai, estaria fazendo hoje, 5 de novembro, 100 anos. Foi a figura mais amável e doce que já existiu, e peço vênia pela velha suspeição da opinião de um filho saudoso. Viveu 78 anos numa dignidade exemplar, um cidadão apaixonado pelos filhos, leal aos poucos amigos, homem de um percurso só, entre o lar e o trabalho.
Seu Luiz nasceu na Fazenda Trangola, em Currais Novos, em 1914, quarto dos onze filhos de Cleodon Bezerra de Medeiros e Maria Felisbela das Neves, ele natural de Santa Luzia (PB) e ela de Acarí. Meu avô batizou todos os dez filhos homens colocando seu próprio nome como sobrenome antes do Medeiros, de quem era descendente original da família surgida em Santa Luzia através de dois irmãos portugueses.
Nos anos 1930, papai veio prestar o serviço militar em Natal, sentando praça no quartel do 21º Batalhão de Caçadores, na área onde décadas depois seria erguido o colégio Winston Churchill em que eu estudaria a partir de 1972. Foi como soldado, liderado por cabos e sargentos ligados ao PCB, que Luiz participou da Intentona Comunista de 1935.
Durante os dias de revolta, em que os amotinados metralharam o quartel da Polícia Militar e colocaram o sapateiro Zé Praxedes na cadeira de governador do estado, ele seria um dos últimos militares a serem presos, quando seguia com uma pequena tropa por estreitas estradas de Macaíba. Tomou uma cadeia que só acabou com a anistia concedida por Getúlio Vargas.
Livre da prisão, mas sem direitos políticos, não tinha como retomar o trabalho na caserna. Sem perspectiva de emprego numa cidade ainda assustada com os comunistas, correu para a fazenda de um tio, em Santana do Matos, onde sobreviveu o suficiente para conhecer minha mãe, então uma menina adolescente, com quem viajou para Ceará-Mirim.
Após algum tempo de vida modesta na cidade dos verdes canaviais e com o primeiro filho no ventre da mulher, Luiz correu para buscar vida digna na capital, de onde havia corrido por falta de oportunidades. Ao completar dez anos de casamento, nasceu o primeiro filho, em 1951. Eu viria oito anos depois, em outubro de 1959, e depois duas meninas, em 1961 e 1963.
Minhas memórias de dias felizes em família, apesar das dificuldades que meu pai e minha mãe se esforçavam em não deixar atingir a alta estima dos filhos, são das casas na Cidade Alta, por trás da igreja Santo Antônio, no começo dos anos 1960; em Santos Reis, até 1969; nas Quintas, entre 1969 e 1975; na Candelária, até 1980; e em Nova Descoberta, onde ambos morreriam nos anos 1990.
Cresci debaixo de um carinho sem fim que papai demonstrava nos pequenos gestos para realizar meus sonhos singelos de consumo. Já adulto, percebi como lhe doía me dar um não por força da carência financeira. Isso me fez um pai que só diz sim, como se na relação com meus filhos eu suprisse os desejos que meu velho não conseguiu realizar comigo.
Viveu o tempo todo pelo conforto dos quatro filhos e de uma neta que criou já no fim da vida; jamais exerceu o direito de lutar pela própria felicidade, se anulou como figura singular para ser o homem plural, pai e avô, um catador de pedaços de alegria para os seus. Até os filhos da vizinhança tinham sua atenção e por várias vezes invadiu a privacidade alheia para impedir um pai de castigar um rebento.
Seus muitos anos como vendedor de tecidos na avenida Rio Branco proporcionaram os meus dias mais felizes da infância e adolescência. Durante as férias escolares, me levava para passar o dia com ele na loja, de onde eu esticava para visitas às bancas de jornais, comprando revistas em quadrinhos e figurinhas de álbuns. Meu acervo hoje é o legado daquele amor.
Minhas primeiras incursões nos cinemas, frequentando as sessões de faroeste e ficção científica nos saudosos cines São José, nas Quintas, e São Luiz, no Alecrim, tiveram a participação dele, o anjo da guarda sempre na espera da minha saída para me conduzir em segurança para casa, ás vezes atravessando a madrugada escura da cidade adormecida.
Quando chegou a velhice, seu lado sertanejo e destemido não aceitou a aposentadoria e o pijama; e lá foi ele arrumar trabalho extra para não ficar parado em casa. Improvisou salários retomando o antigo ofício comerciário e vendeu jogo do bicho. Nos anos 1980, quando voltei de São Paulo, estabeleci visitas quase diárias ao seu ponto de venda, na estreita rua General Osório.
Tanto comigo, quanto com meu irmão, os conflitos de geração nunca foram obstáculos para sua compreensão de mundo. Assimilava rapidamente os costumes culturais da juventude e jamais ensaiou escândalos ou histerias diante das nossas posturas no cotidiano. Fazia questão de transparecer o orgulho que tinha dos filhos cabeludos e até brigou por isso quando um diretor do ginásio quis aparar minhas madeixas.
Seus olhos cintilaram de alegria quando constatou o bom rumo profissional tomado por mim e meu irmão, sentia-se feliz quando ambos o visitavam, ele sempre sentadinho na sua cadeira de cordas plásticas postada na calçada, enquanto os netos faziam barulho pela casa adentro. Como cantou Caetano, “as coisas migram e ele serve de farol”.
Numa tarde de 1993 em que julho mal havia começado, o bairro de Nova Descoberta ainda coberto das cinzas e papeis coloridos das festas juninas, eu recebi um telefonema. Era minha irmã mais nova, ligando do hospital São Lucas, onde acabara de levar papai, após mais uma crise de dores no peito. Quando cheguei na calçada do pronto-socorro, ela estava saindo chorando e balançando negativamente a cabeça.
Meu herói estava morto, minha referência de bondade e amor havia partido sem tempo para despedida. Uma dor que até hoje ensaia pontadas bateu forte quando minha irmã me contou que ao entrar com ele no táxi, a cabeça posta em seu ombro, a respiração ofegante, ele lhe fez uma pergunta, as últimas palavras antes de apagar: “Cadê Alex?”.
Todas as vezes que meus pensamentos estão nele ou na minha mãe, eu sempre lembro daquele momento, da sua pergunta em meio à angústia da morte. E em todas essas vezes, que são muitas, eu fico desejando que ele e eu (ambos ateus) estejamos errados quanto ao fim da vida. Porque depois de tudo que eu vivi e aprendi com ele, a maior vontade é poder algum dia responder, aos prantos: “Estou aqui, pai!”.