Prosa do Domingo, na Coluna Plural, do Novo Jornal.
A estupidez do legalismo.
Ou o legalismo da estupidez. Lênin afirmou que “o esquerdismo é a doença infantil do comunismo”. Ouso dizer que o legalismo é o sarampo da legalidade.
O mal das virtudes é a sua deformação. O moralismo deforma a moral, o puritanismo deforma a ética e o legalismo desmoraliza a lei.
A Constituição de 88, ciosa dos seus defeitos, previu uma reforma geral para cinco anos após a promulgação. Por covardia ou conveniência escusa não a fizeram. Hoje, o país clama por uma Carta Constitucional que não se confronte com a realidade. A mesma covardia ou preguiça institucional impede a coragem cívica de convocar uma Constituinte originária e exclusiva para a elaboração de uma nova Constituição.
Se é verdade que ninguém está acima da Lei, também é verdade que a Lei não está acima da realidade.
Veja que a Constituição, no seu artigo 196, impõe: “Saúde é direito de todos e dever do Estado”. Pergunto: Isso é verdade? Não. Desde 88 que a realidade desmente a Constituição. E vai continuar desmentindo. Porque a Constituição é a Carta das corporações e quem banca a vida social do Brasil são as corporações. De todas as naturezas. As castas e seus interesses.
Não fica só nisso. Nem a Suíça, represa dos ladrões do mundo, tem o padrão de vida que a nossa Constituição mentirosamente oferta ao Brasil. É o patronato do legalismo.
E como toda deformação só vê suspeitas nos outros, os legalistas não fogem à regra. Vigilantes, de holofotes, a sentir o cheiro de irregularidade em tudo e em todos, são espertamente condescendentes com os próprios desvios.
Exemplos? Um prédio comprado com função inútil, sem prévia avaliação de custo e uso, largado ao abandono no centro da cidade. Fosse outro órgão o comprador, na mesma semana dois inquéritos teriam sido instaurados. Um cível e outro criminal. Além da pergunta que eles sempre fazem: “Quem ganhou o quê com esse negócio suspeito”?
Outro legalista é flagrado numa ação de tortura contra um investigado, “eu espremo até conseguir alguma informação”. Tudo para levar à sebosa delação premiada. Tortura não é só o pau-de-arara. A ameaça é crime previsto em Lei, e no inquérito é tortura. Até o Papa Francisco declarou que tortura não é pecado, é crime.
Voltemos à Constituição. A carta foi elaborada num momento de “euforia cívica”, onde todos negociaram com todos. Sob o comando de Ulysses Guimarães, Sarney, Lula, Maluf. Ruralistas e reformistas rurais, esquerda e direita urbanas. Todo mundo se compôs. Sob o amparo das corporações. O PT ameaçou não assinar. Tudo pantim.
E num país de instrução precária, a ordem jurídica a depender de legislação irreal. Sob a fiscalização de legalistas e não da legalidade.
É o pais que temos. Geograficamente exuberante, economicamente desigual, socialmente injusto e juridicamente hipócrita. Té mais.